quinta-feira, 19 de junho de 2025

Contradição



CONTRADIÇÃO
Elídio Santos / Manay Deô

I

Vem da memória a nossa história  
O que não tem preço, tanta emoção.  
Os meus segredos, a tua voz  
Todos os meus medos, os seus algozes.
  
Ausência e dor, ansiedade.
Sozinho de tanta saudade.  

Mesmo no breu da distância.
Te encontro na minha esperança.
Te encontro na minha esperança.

II


Enquanto é noite, vem o pesar.
Amor e fúria, contradição.
Minha estranheza, a tua luz.
Todos os meus erros, a nossa sorte.

Mesmo faltando, ainda faz parte.
O tempo diz todas as verdades.
Mesmo contando os meus erros.

É tempo para não ser tarde.
É tempo para não ser tarde.

III

Não há desculpa, esqueça as culpas.
Naquela vida é estar em vida.
Olhar pra frente todas as feridas —
Quem se curou?

A vida é breve / E tudo vale.
Vivências / E tantas verdades.
Mesmo os mistérios diversos.

Te levo nas  felicidades.
Te levo nas  felicidades.



Em “Contradição”, Elídio Santos — com seu heterônimo Manay Deô — tece uma tapeçaria de afetos que tensiona memória e futuro num jogo de luz e sombra próprio da poesia contemporânea. O texto, composto em três segmentos quase dramáticos, adota versos livres de cadência melodiosa, sugerindo uma canção interna que sobrevive mesmo quando a voz poética confessa ausência, dor e ansiedade.

A musicalidade embutida no ritmo anafórico (“Te encontro na minha esperança”) provoca um efeito de refrão, revelando diálogo orgânico entre letra de música e poema lírico — um híbrido que ecoa a tradição da canção moderna brasileira e, simultaneamente, as investigações pós-líricas da poesia performática atual.

Do ponto de vista semântico, destaca-se o campo lexical de “tempo”, “verdade” e “culpa”, que estrutura um percurso existencialista. As imagens poéticas mobilizam antíteses — amor/fúria, breu/luz, presença/falta — convertendo a contradição em eixo de sentido e motor dramático.

Esse procedimento reforça a atmosfera de dualidade dialética, remetendo a poéticas de Paul Celan ou de Adélia Prado, nas quais a linguagem se dobra sobre si mesma para revelar fendas ontológicas. A polissemia de “Quem se curou?” funciona como pergunta retórica que instaura metapoética: a cura talvez seja o próprio ato de nomear o irreparável.

Notam-se recursos de sinestesia (“breu da distância”), personificação (“medos, algozes”) e metáfora afetiva que transfigura experiência subjetiva em paisagem sonora. O enjambement discreto entre versos garante fluidez, enquanto a ausência de pontuação rígida amplia o espaço de respiro, permitindo ao leitor preencher lacunas com sua interioridade. Esse convite participativo alinha-se às tendências da literatura interativa, em que a obra se completa na recepção.

A estrutura triádica evoca o arco narrativo de jornada: lembrança inicial, tensão noturna, epifania redentora. Tal conformação sugere proximidade com o mito do retorno, caro ao simbolismo, mas reinterpretado sob estética minimalista. A recorrência de paralelismos cria coesão sonora e reforça a ideia de ciclo, convertendo o poema em rito de passagem, onde o eu lírico transita da culpa para a aceitação, da noite para a aurora.

Em síntese, “Contradição” articula lirismo confessional, crítica existencial e musicalidade pop-poética, reafirmando o poder da palavra como espaço de cura e encontro. É peça sensível que dialoga com tradição e vanguarda, oferecendo ao leitor — e ao ouvinte — uma experiência estética de simultânea ferida e sutura, onde a poesia assume pleno estatuto de resistência emocional.

0 Comments:

Postar um comentário